Versão impressa do livro Um Rio de Sabores é lançada com protagonismo de mulheres, personagens da obra
- comunica Ecoporé
- há 1 dia
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Em sessão de autógrafos, cozinheiras se emocionam ao ver suas histórias e receitas eternizadas. Obra é fruto do projeto Forest Fisher e une ciência, cultura e memória

Na noite da última segunda-feira (21), a Casa de Cultura Ivan Marrocos, em Porto Velho, foi tomada pelo som de conversas emocionadas, páginas sendo folheadas e mãos firmes segurando canetas: personagens do livro Um Rio de Sabores participaram da sessão de autógrafos do lançamento de sua versão impressa. Vindas dos distritos de São Carlos, Cujubim, Jaci-Paraná e Vila Nova Teotônio, as mulheres que protagonizam a obra ocuparam o centro da cena — não mais como coadjuvantes das margens, mas como autoras de um legado.
“Jamais pensei que estaria num livro. Ver minha foto, minha receita, meu nome ali… foi como se dissesse: eu existo, e o que eu faço tem valor”, disse, emocionada, Cláudia Lisboa, da Vila de Teotônio, ao assinar seu exemplar.

O livro já havia sido lançado digitalmente em março, mas sua chegada ao papel trouxe uma dimensão nova: materializou memórias, reconheceu trajetórias e devolveu às comunidades um retrato sensível da sua própria história.
Um registro
Um Rio de Sabores é resultado do projeto Forest Fisher, executado pela ONG Ecoporé, em parceria com o Laboratório de Ictiologia e Pesca da UNIR (LIP-UNIR). O projeto teve como foco a construção de protocolos de gestão pesqueira e territorial na região do rio Madeira, integrando ciência e conhecimento tradicional em uma abordagem participativa.
“Este livro foi nossa forma de apresentar os resultados do projeto não apenas em relatórios técnicos, mas em uma linguagem viva, sensível e acessível. Ele carrega a dimensão humana do Forest Fisher, revelando como os impactos ambientais afetam diretamente quem vive do rio”, explicou Paulo Bonavigo, coordenador do projeto.
Dividido em seções temáticas, o livro percorre desde a geografia e os ciclos do rio Madeira, passando pelas práticas de pesca, até os efeitos das ações humanas — como hidrelétricas e desmatamento — na biodiversidade e na segurança alimentar das comunidades. Ao longo do percurso, revela também a culinária como elo entre território, identidade e resistência.
A realização do livro contou com o envolvimento direto de Carolina Doria, coordenadora do Laboratório de Ictiologia e Pesca da UNIR (LIP-UNIR). Com longa trajetória de pesquisa junto às comunidades ribeirinhas do rio Madeira, Carolina foi uma das articuladoras centrais do projeto que deu origem à obra.

“Foram mais de 15 anos de trabalho com essas comunidades, principalmente em ações de monitoramento pesqueiro. Nesse caminho, percebemos a profundidade dos saberes que ali existem — não apenas sobre os peixes, mas sobre o território, a alimentação e a vida no rio. O livro surgiu da vontade de registrar isso com cuidado e devolver às pessoas um pouco do que sempre compartilharam conosco”, afirmou.
Sua contribuição foi decisiva para a construção de uma ponte entre o conhecimento acadêmico e o saber tradicional das comunidades que vivem do e com o rio Madeira.
As mãos que moldam o sabor e a memória
Ao todo, mais de vinte receitas protagonizadas por mulheres das comunidades foram registradas, cada uma acompanhada de uma história, um rosto, um gesto. Maria Silva, outra cozinheira presente no lançamento, falou sobre a emoção de participar:
“Quando aceitei o convite, não imaginei o quanto aquilo ia mexer comigo. A receita que coloquei no livro foi feita com o mesmo amor que tenho pelo rio. E quando vi minha imagem impressa, senti orgulho, senti pertencimento. É como se minha vida tivesse ganhado uma moldura.” destacou.

A fotografia foi essencial para essa moldura. Israel Vale, fotógrafo do livro, mergulhou no cotidiano das cozinheiras e pescadores, buscando capturar o invisível.
“Fotografar esse livro foi entender que cada detalhe — um corte de cebola, uma mão que tempera, um olhar sobre o fogão — é um ato de saber. Eu quis mostrar isso nas imagens. E o mais gratificante foi ver as próprias personagens se emocionarem ao se reconhecerem. Foi como devolver a elas uma imagem que sempre foi delas, mas que nunca tinham visto com tanta nitidez.”
A vida nas páginas
Na parte visual, o livro também foi pensado como um território simbólico. O designer Erick Carreira, da Ecoporé, criou todos os elementos gráficos do zero — ilustrações de peixes, canoas, utensílios — inspirados na relação entre natureza e cultura.
“Desde o início, buscamos representar a circularidade da vida no rio. Tudo está conectado: o alimento, o sustento, o tempo do rio, o saber ancestral. E há uma música, do grupo Raízes Caboclas, que me guiou como trilha invisível. Ela diz: ‘Cada canto esconde um conto, cada homem e mulher tem a fé, a força e a história pra contar’. Essa frase sintetiza o que é o livro: um canto cheio de contos.”
Ciência participativa
A linguagem do livro também foi pensada com cuidado. Felipe Lins, biólogo e um dos responsáveis pela redação, participou traduzindo os dados técnicos para uma linguagem acessível e próxima.

“Por muito tempo, a ciência coletou dados sem devolver nada às comunidades. Este projeto quis fazer diferente: escutar, registrar e devolver. Trazer as receitas, os relatos, os impactos percebidos. E mostrar que o conhecimento tradicional é tão legítimo quanto o acadêmico. Fazer isso no lugar onde cresci foi ainda mais especial.”
A coordenadora editorial, Ana Paula Albuquerque, resume o sentimento ao ver a versão impressa ganhando o mundo:
“Finalizar o livro foi como assumir um novo compromisso: o de espalhar essas histórias. Cada página carrega o som das águas do Madeira, o cheiro da cozinha, o peso das interferências humanas e, acima de tudo, o brilho dos olhos de quem compartilhou sua vida com a gente. Esse livro é um retrato de resistência, sim, mas também de afeto e generosidade.”
Estudantes que escrevem o futuro
Durante a produção da obra, também foram realizadas oficinas de educação ambiental nas escolas de Cujubim Grande e São Carlos. Estudantes participaram de atividades que abordaram a relação entre peixes e floresta, os impactos do desmatamento e a importância da conservação.
Ao final das oficinas, foram convidados a escrever cartas para o rio Madeira. Entre os textos, destaca-se a carta de Mirela Almeida Carril, 16 anos, que emocionou a equipe do projeto e integra a versão impressa do livro:

“Querido rio Madeira, escrevo esta carta com o coração apertado e lágrimas nos olhos. Eles só pensam em você pelo dinheiro (...). A construção da hidrelétrica foi um golpe cruel. Você é um verdadeiro guerreiro. Prometo que estarei por você.”
Um rio de saberes que continua fluindo
Um Rio de Sabores está disponível na biblioteca digital da Ecoporé. Mais do que uma publicação, é um gesto político e poético: um reconhecimento às mãos invisíveis que sustentam o alimento, a memória e a biodiversidade amazônica.
Naquele fim de tarde, entre autógrafos, conversas e sorrisos tímidos, as cozinheiras deixaram de ser personagens e tornaram-se autoras — não apenas do livro, mas da própria narrativa que constroem, dia após dia, nas margens do rio Madeira.
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